sábado

Voma Lelé e as Moscas Tontas II

A escuridão era total e o silêncio abafado.
O Alexandre barafustou: “Não vejo nada... Ai! Está aqui um cão... Não me empurres. Olha que ele me morde...”
O Voma Lelé tapou-lhe a boca e rosnou-lhe ao ouvido: “Chiu! O cão é o casaco de peles da minha mãe. Estamos dentro do bengaleiro. Cala-te ou sou eu quem te morde. Quero ver quem entrou na sala.”
Espreitou pelo buraco da fechadura: “É o meu pai. Deve ter vindo atender o telefone.”
O Alexandre começou a agitar-se: “Também quero ver!”
“Pouco barulho. Ele já encontrou o tapete... Parece admirado... Anda à roda com o tapete na mão...”, o Voma Lelé continuava com o rosto colado ao buraco da fechadura: “Agora, abriu a porta da rua e colocou o tapete no sítio...”
O Alexandre tirou uma lanterna minúscula do bolso e começou a explorar o interior do bengaleiro: “Isto é muito grande. Atrás dos casacos há caixas... garrafas... e uma estante... Voma Lelé, encontrei uma estante!”
“Cala-te. O meu pai ligou o televisor e sentou-se. Vamos perder a final da Taça de Portugal. Bolas... ”, o Voma Lelé estava desanimado: “Temos de ficar aqui fechados hora e meia, se não houver prolongamento...”
O Alexandre aproximou-se, a mastigar com a boca cheíssima: “Enconhei... nhaque...nhaque... um’axa de cho... nhaque... late...”
“Estás a fazer muito barulho. Não me digas que partiste uma garrafa de conhaque... Estou perdido.”, o Voma Lelé sentou-se.
O Alexandre sorriu: “Está descansado... nhaque... Não parti nada. Estava a dizer-te que encontrei esta caixa de chocolates. Estamos mesmo dentro do bengaleiro?”
O Voma Lelé, dramatizando, quase gemeu: “Os chocolates da minha mãe... O tapete... O telefonema... E tudo tão de repente...”
O Alexandre, tentando animá-lo, disse: “Come oito quadrados de uma só vez e ficas fixe. Não sabia que a vossa casa era tão esquisita... “
O Voma Lelé fingindo recompor-se, explicou-lhe que estavam numa antiga arrecadação que tinha sido dividida a meio: “... na parede atrás da estante abriram umas portas de correr que dão para o escritório do meu pai...”
A campainha da porta da rua soou e obrigou-o a voltar ao posto de observação: “Acaba de entrar o teu pai!”
O Alexandre lamentou-se: “Estou feito! Desliguei--lhe o telefone na cara, ele reconheceu-me a voz e veio a correr para cá... “
O Voma Lelé tranquilizou-o: “ Não é nada disso. Estão muito sorridentes em frente do televisor. O jogo de futebol vai começar. Estão entretidos.”
O Alexandre afastou-se para mais uma exploração sempre a resmungar: “Não gosto de futebol... não há mais chocolate... não gosto de estar fechado... se não saio daqui fico tantã... nem há moscas...”. Depois, quase gritou: “Estamos presos!”
O Voma Lelé aproximou-se: “Fala mais baixo e ilumina as minhas mãos. Vamos sair daqui”. Tacteou os painéis da estante, abanando-os, até que um cedeu: “ Óptimo, este painel está solto. Passa-me o canivete.”
O Alexandre estava aparvalhado: “Uma passagem secreta... Espectacular... Salvos por uma passagem secreta... “
O Voma Lelé removeu o painel, puxou-o por um braço e pouco depois entravam no escritório: “Não toques em nada!”, preveniu o amigo, arrastando-o até à porta. Encostou o ouvido na madeira para escutar melhor e disse: “Podemos voltar para o quarto.”
O Alexandre rodou a maçaneta e exclamou: “Bolas! Estamos fechados à chave. Temos de sair pela varanda. Usamos o equipamento de alpinismo do teu pai...”
O Voma Lelé interrompeu-o: “Esconde-te debaixo da secretária! Ouvi passos.”
Aguardaram um momento que lhes pareceu uma eternidade. Depois, o Voma Lelé saiu de trás do cortinado onde se escondera, foi buscar o amigo e, mais uma vez, lhe disse: “Não toques em nada. Saímos pela varanda, passamos para a casa da Tia Maria. Ela é muito minha amiga e tem sempre uns biscoitos muito bons...”
O Alexandre ficou muito animado com a ideia e correu para a varanda.
O Voma Lelé seguiu-o: “Estás a ver a parede? Não chega ao tecto, vamos passar por ali. Trepas para o parapeito da janela e depois apoias os pés nos meus ombros...”
Pouco depois o Alexandre estava em cima da divisória: “Vou saltar!”.
“Cuidado com as sardinheiras!”, gritou o Voma Lelé.
Ouviu-se um estrondo e a resposta pronta: “Aterrei em cima de umas plantas que não têm espinhos. Não vejo nenhum peixe aqui. Podes avançar!”
O Voma Lelé ficou desolado, pediu ao amigo: “Espera por mim! Não faças mais nenhum disparate. Não disse sardinhas, disse sardinheiras...”
Como era ágil e estava muito treinado naquela operação, transpôs com facilidade o obstáculo e, quando estava a endireitar um vaso e a compor a planta, apareceu o Alexandre a mastigar: “Tenho uma notícia muito triste para te dar. A tua amiga foi assassinada. Bebeu meia chávena de chá e morreu envenenada. Coitada, nem provou os biscoitos, são mesmo fixes...”
O Voma Lelé estava irritado: “Disse-te para teres cuidado e para esperares por mim. A Tia Maria é muito minha amiga. Acaba com as asneiras!”
O Alexandre, com um ar muito preocupado, disse: “Tens um crime para resolver. A tua amiga está caída no cadeirão. Tem o nariz gelado. Deve estar morta há muito tempo... assassinada!”

(Jonas)

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